segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A POLÍTICA BRASILEIRA DE COMÉRCIO EXTERIOR: A ANTIGA E A NOVA ORTODOXIA - CONFRONTO ENTRE DOUTRINAS E MECANISMOS DE AÇÃO.


 
R E S U M O

 
LEITE, Érico Lins. A Política Brasileira de Comércio Exterior: a antiga e a nova ortodoxia - confronto entre doutrinas e mecanismos de ação.
Rio de Janeiro: UFRJ/IE, 1998. Tese de Doutorado. xxxi, 611 p., 2 v.

 

O principal objetivo desta Tese é demonstrar que o Brasil cometeu um grave erro ao adotar o modelo liberal de comércio, no início dos anos 90, quando rompeu com uma longa tradição regulatória e abdicou em favor do mercado à prerrogativa de promover uma política de comércio exterior.

 
Até um passado recente, o Estado brasileiro manteve fortes estruturas de formulação de política e de administração do comércio exterior, o que lhe permitiu desempenhar decisivo papel regulador para solução de diferentes crises cambiais, desde aquela provocada pela Depressão Mundial dos anos 30 até as mais recentes, nas décadas de 70 e 80.

 
De fato, a política brasileira de comércio exterior nasce com a formidável crise desencadeada pela Depressão de 30 e se desenvolve em razão de novos acontecimentos internacionais que, a partir de então, envolvem o País. À medida que nova crise se sucedia, eram instituídos mecanismos de defesa ou procedidos a ajustes nos instrumentos anteriores, fazendo com que seguidamente fosse aumentado o grau de regulação do Estado sobre a economia e, em especial, sobre as contas externas, com o que foi sendo dado forma e desenvolvimento à política comercial brasileira.

 
A esse longo e vigoroso período de intervenção do Estado, que objetivava equilibrar as contas externas e fomentar a produção nacional, através dos critérios de seletividade nas importações e promoção das exportações, sucede-se, a partir de 1990, uma nova ortodoxia, baseada no liberalismo comercial, que renega a política e todos os instrumentos até então adotados.

 
A estratégia de desenvolvimento fundamentada na proteção à indústria nacional e na substituição de importações, adotada pelo Brasil ao longo de, no mínimo, cinqüenta anos, acrescida da promoção às exportações, nas décadas de 60 a 80, é integralmente abolida para dar passagem a outro modelo, sob o argumento de que a sua continuidade impediria a retomada do desenvolvimento econômico e maior inserção do País na economia mundial.
 
 O novo paradigma consiste em liberalizar as importações de forma a expor a indústria brasileira à concorrência externa. A expectativa é que sejam elevados os padrões de qualidade e diminuídos os preços e, em conseqüência, o produto nacional obtenha ganhos de competitividade. Isso beneficiaria tanto a produção voltada para o mercado doméstico, que se tornaria mais competitiva comparativamente aos produtos de origem estrangeira, quanto a produção destinada à exportação que, inclusive, poderia prescindir de qualquer incentivo.
 

Considerando que o atual modelo apresenta formas de atuação governamental e de regulação da atividade econômica diametralmente opostas às adotadas no passado, que possibilitaram ao País enfrentar diferentes crises de balanço de pagamentos, a Tese questiona se a nova ortodoxia é suficientemente capaz de evitar ou sequer contornar novas crises cambiais ou, o que seria pior, se eleva o grau de exposição do País a repentinas mudanças na ordem econômica internacional.

 
O ponto fundamental, portanto, é saber se a nova ortodoxia favorece ou, pelo contrário, limita o desenvolvimento econômico brasileiro, tendo em vista que a liberalização das importações (e, em decorrência, o déficit na balança comercial) requer o contínuo ingresso de recursos financeiros internacionais para o equilíbrio das contas externas.

 
Visando a discutir a questão, foi confrontada a política de comércio exterior aplicada pelo Brasil desde o início do século até o final dos anos 80, período que denominamos de Antiga Ortodoxia, com a Nova Ortodoxia, que se inicia e se desenvolve na atual década.

 
A memória de oitenta anos de política comercial foi recuperada através do inventário e da análise da legislação pertinente (leis, decretos-leis, medidas provisórias, decretos, portarias, instruções, resoluções, circulares, comunicados e avisos), além de se pautar em depoimentos de pessoas que atuaram na área, em diferentes épocas, e na própria experiência do autor, como técnico da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil, nos anos 70 e 80, da Secretaria de Comércio Exterior, até o início de 1995, e como professor de economia internacional da UFRJ, desde 1978.


 A Tese destaca a importância dos organismos governamentais criados com vistas a formular, coordenar e executar a antiga política industrial e de comércio exterior; examina e põe em relevo os incentivos fiscais e creditícios utilizados para promover as exportações, assim como os subsídios concedidos ao frete, aos armadores e à indústria de construção naval; examina os instrumentos administrativos e cambiais de restrição às importações, desde a instituição do conceito de similar nacional, passando pelos leilões de câmbio, até as listas de mercadorias com guia de importação suspensa e os programas de importação.

 
Além disso, são comparados os efeitos sobre o desenvolvimento da produção nacional na vigência do antigo regime tributário das importações, em que prevaleciam tarifas aduaneiras nominais elevadas, mas dada a existência de regimes especiais de importação, as tarifas efetivas eram baixas, com o atual sistema, em que são aplicadas alíquotas reduzidas, indistintamente, à toda a pauta. Também é amplamente discutida a falta de preparo dos atuais órgãos governamentais no que concerne à aplicação de medidas de defesa comercial, relativamente às práticas desleais de comércio amplamente utilizadas por terceiros países, para promover suas exportações.

 
A Tese estuda a abertura do Brasil ao mercado internacional de capitais e mostra que, nos anos 90, em razão dos resultados comerciais, da maior ou menor sobrevalorização do câmbio e da variação no nível das reservas internacionais do País, foram procedidas a periódicas alterações nos instrumentos de captação recém-criados, numa incrível sucessão de idas e vindas, ora incentivando, ora impondo limites à captação, pelo País, de recursos no mercado financeiro internacional, palco, nos últimos anos, de sucessivas e repentinas transformações.

 
A Tese também examina atentamente os planos de estabilização econômica aplicados na economia brasileira, nas décadas de 80 e 90, considerando estarem fortemente relacionados ao câmbio e ao comércio exterior. Ademais, mostra que o País, desde longa data, se utiliza  largamente da sobrevalorização do câmbio como instrumento de política antiinflacionária.

 
Finalmente, são analisados os resultados pós-liberalização do comércio exterior e do movimento de capitais.

 
A esse respeito, releva observar que toda vez que o nível de atividade econômica se expandiu, as importações dispararam e as exportações se entorpeceram, exceto nos períodos em que as cotações internacionais de algumas commodities se elevaram. Em conseqüência, os saldos comerciais declinaram de forma quase ininterrupta desde 1990, até se tornarem negativos, a partir de 1995. Na conta de serviços cresceram geometricamente os pagamentos de juros, relativos ao antigo e, sobretudo, ao novo endividamento, além das remessas de lucros e dividendos, em grande parte derivadas do avanço do programa de desestatização de empresas e serviços públicos, assim como do aumento de aquisições de empresas e bancos nacionais por grupos estrangeiros. Além disso, houve desmesurado aumento das despesas com transportes e viagens internacionais.

 
Em decorrência, ocorrem, na atual década, sucessivos déficits no balanço de pagamentos em conta corrente, que alcançam, somente em 1997, o expressivo valor de US$ 33 bilhões, equivalente a mais de 4% do Produto Interno Bruto brasileiro.

 
Desde que o Brasil adotou o modelo liberal, deixando de praticar qualquer política industrial e de comércio exterior, o equilíbrio das contas externas ficou na inteira dependência da captação de recursos no mercado financeiro internacional, fazendo-se necessário para dar sustentação ao modelo que também fosse liberalizado o movimento internacional de capitais. À medida que os saldos comerciais recuavam e, sobretudo, quando os déficits começaram a se suceder, foram freneticamente criados e postos em prática um sem número de mecanismos financeiros para atração de recursos externos visando o fechamento do balanço de pagamentos. Enquanto isso, seguindo o receituário liberal, o País se resignava em esperar que a produção nacional obtivesse, espontaneamente, competitividade suficiente para incrementar as exportações e todos os agentes econômicos diminuíssem a demanda por importações.

 
Ao longo da década, acumulou-se substancial volume de reservas internacionais, visando a prevenir eventuais interrupções no influxo de capitais e forma de evitar maior sobrevalorização cambial que, paradoxalmente, tinha origem na própria entrada maciça de recursos externos no País.

 
A ausência de política de comércio exterior e a decorrente dependência ao mercado internacional de capitais implicaram na necessidade de o País manter as taxas de juros em patamares elevados. A política monetária, portanto, precisou ser periodicamente ajustada, no mínimo, ao diferencial entre as taxas de juros internas (descontada a variação cambial) e as taxas internacionais. O endividamento interno público, além de se ter elevado em grande parte por conta do aumento das reservas, passou a crescer continuamente, em função da extraordinária realimentação provocada pelas altas taxas de juros.

 
A expansão da atividade econômica foi contida e o nível de emprego reduziu-se em mais de 30%.


 Relativamente à estabilização econômica, são evidentes os resultados alcançados pelo País, a partir de 1994, com o Plano Real. Com efeito, a liberdade para importar e a política cambial de sobrevalorização da moeda nacional constituem as bases sobre as quais foi construída e se mantém a atual política antiinflacionária. Oferta abundante a preços baixos disciplinam e mesmo limitam os preços dos bens de produção doméstica que estejam submetidos à concorrência internacional.

 
Nada obstante, a estabilidade do nível geral de preços, como objetivo de curto e longo prazos de política econômica, embora desejável e, até certo ponto, fundamental  para o desenvolvimento econômico,  não pode se transformar em um fim em si mesma. Assim, os meios utilizados para alcançar e manter a estabilidade da renda monetária devem ser objeto de rigorosa avaliação, pelas implicações negativas que, a médio e longo prazos, podem acarretar sobre o desenvolvimento econômico.

 
Não se desconhece que é tradicional, na ciência econômica, o conflito entre equilíbrio interno e equilíbrio externo. Vale dizer, há indissociável choque entre estabilidade das contas domésticas concomitante com a das contas externas. Na maioria das vezes, quando é alcançado o primeiro equilíbrio, isto ocorre em detrimento do segundo e vice-versa. Aceitável no curto prazo, mas perigoso no longo prazo, justamente pelas suas conseqüências sobre o desenvolvimento econômico.

 
Onde parecem existir novidades no caso brasileiro atual, em relação ao tradicional conflito, não é a submissão das contas externas do País à política antiinflacionária, mas a insistência em praticar a liberdade comercial na expectativa que, em função de ganhos de competitividade do produto nacional, venha ocorrer aumento espontâneo das exportações, o que permitiria o equilíbrio das contas externas e viabilizaria a continuidade dos resultados de controle da inflação.

 
Nessa linha de raciocínio, os déficits comerciais sucessivamente contabilizados desde 1995 ganham dimensão superior. Não se tratam mais, como no passado, de déficits conjunturais ou de déficits estruturais, decorrentes de choques externos de oferta ou de uma ação programática de substituição de importações. Agora, os déficits na balança têm origem na liberalização comercial, ou seja, no próprio modelo adotado pelo País, visando a promover a reestruturação produtiva e servir como instrumento para a estabilização da economia.

 
A Tese aponta para o fato de que em presença de sucessivos déficits comerciais não é sequer possível continuar mantendo o atual  programa de estabilização econômica, baseado na abertura comercial e na sobrevalorização do câmbio, porque os déficits implicam no aumento da dependência da captação de recursos externos para o equilíbrio do balanço de pagamentos e a submissão da política monetária aos resultados externos, numa conjuntura internacional em constante mutação.

 
A Tese conclui que o Brasil cometeu um grave erro ao adotar o modelo liberal de comércio, ao romper com a tradição regulatória e abdicar em favor do mercado à prerrogativa de promover uma política de comércio exterior.

 
A atual ortodoxia é incapaz de solucionar ou evitar a ocorrência de novas crises cambiais. Pior, o novo modelo aumenta consideravelmente o grau de exposição do Brasil a crises internacionais, porque o equilíbrio das contas externas e o desenvolvimento econômico passaram a depender de forma contínua e crescente da captação de recursos de curto prazo no mercado financeiro internacional.

 
Portanto, a causa da crise cambial que aí está é o modelo seguido pelo País, a ausência de política comercial, que subordina o equilíbrio das contas externas brasileiras ao permanente ingresso de capitais estrangeiros, elevando consideravelmente a exposição do País à ocorrência de crises econômicas internacionais.

 
A rapidez com que processou tanto a perda quanto a recuperação das reservas internacionais brasileiras, nas crises do México, ao final de 1994, e do Sudeste Asiático, no início de 1998, assim como o expressivo valor das reservas perdidas em curto espaço de tempo, na atual crise cambial, iniciada com a débâcle russa, além de evidenciarem a volatilidade dos fluxos de capitais e o risco de o País continuar dependendo exclusivamente desses recursos para o equilíbrio das suas contas externas, são argumentos que ajudam a demonstrar o grande equívoco cometido pelo Brasil ao adotar a ortodoxia liberal de comércio.

 
A solução reside na obtenção de uma balança comercial positiva. Todavia, em presença de ampla liberdade comercial, que acarreta o contínuo crescimento das importações, e na falta de uma política industrial consistente, que forneça meios efetivos para o aumento da competitividade do produto nacional e incremento das exportações, é impossível resolver o déficit comercial e, por conseguinte, estancar o déficit em transações correntes.

 
A proposta para a superação definitiva da atual crise cambial, evitar que outras se desenvolvam, assim como para permitir que se possa praticar uma política monetária independente, é que o Brasil estabeleça um projeto mínimo de desenvolvimento e venha a formular uma Política de Comércio Exterior, sendo necessário, ainda, criar um órgão coordenador de política e reestruturar os atuais órgãos encarregados da administração do comércio exterior.

 

Érico Lins Leite
Rio de Janeiro, RJ
Setembro de 1998

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